A idade da emoção
Walcyr Carrasco
Fui assistir à peça Uma espécie de Alasca, de Harold Pinter, que estreou
há pouco em São Paulo. Conta a história de uma mulher que entrou em coma
aos 15 e acordou 29 anos depois. Bem interpretada por Yara de Novaes, inspirase
em um caso real do médico americano Oliver Sacks. Para mim, o texto "bateu"
de forma profunda. Não aconteceu o mesmo comigo, e com muita gente que
conheço? Estou acima dos 60, o tempo passou tão rapidamente! Não, não estive
em coma. Mas um dia a gente "acorda" e descobre que a idade chegou. Mais
que isso: que chegou, mas não chegou, porque o coração e os sonhos continuam
os mesmos. Até antes da peça, na espera, percebi que estava lá uma outra
tribo, já no jeito de vestir. Diferente de mim, de meus amigos, das pessoas que
me cercam. A personagem do texto acorda com um rosto mais velho, um corpo,
mas sente os desejos, medos, de uma garota de 15. Olha para a irmã e não reconhece:
quem é afinal essa mulher velha e gorda?
Todos os homens da minha idade já passaram por isso, ao reencontrar a
garota mais sexy, mais ambicionada da escola. Muitas vezes, virou uma senhora
gorda, com netos. A gente procura nos olhos, em algum traço, aquela menina. E
diz para si mesmo:
– Como foi que ela mudou tanto assim?
Mas eu também mudei, fisicamente. Uma antiga namorada, dos 17 anos,
comentou com uma amiga em comum – modéstia à parte – que fui o homem
mais belo que ela já conheceu. Eu? Pois é. Fui. Certamente, se ela me reencontrar,
pensará o mesmo:
– Onde estão aqueles traços? O topete?
Na área em que trabalho, vejo isso acontecer com frequência, de forma
até desesperadora. Quantas atrizes jovens, sexy, explodindo, já conheci? Tinham
qualquer homem a seus pés. O tempo passou. Vieram outras atrizes. Elas
amadurecem, sem perceber. Continuam com os mesmos sorrisos sedutores,
olhares intensos. Surpreendem-se quando disputam um papel com uma garota
de 20 anos.
– Mas eu faço! Tenho 35, mas passo por 20.
Não passam. A câmera é inexorável, ainda mais com a alta definição. A
pele muda. Algo, nem sei dizer o quê, a vida talvez, transforma um semblante
que ainda é belo. Mas sem o mesmo frescor. Iniciam-se os procedimentos estéticos.
Botox, plásticas. A juventude não volta. O rosto fica mais agradável, não
nego. Sem tantas marcas, sem os sulcos na pele causados até pelas histórias da
vida. Alguém oferece o papel de tia. Ou de mãe. A atriz se assusta.
– Mas eu não pareço ser mãe dela!
Só uma sucessiva série de dissabores "acordará", até cruelmente, a pessoa.
O tempo passou. A idade chegou. Funciona do mesmo jeito para mim, para
meus amigos, para quem tem 40. A juventude, na peça, é simbolizada pelo coma.
Um dia a gente acorda. O tempo simplesmente passou, e é preciso rever
expectativas, projetos, sonhos. Mas é? A emoção, sim, continua a mesma! Como
lidar com isso? Ainda tenho livros para escrever, novelas, quero viver um grande
amor. Meu coração bate por coisas novas. E, como eu, o de tanta gente! A sociedade
agrária, onde os pais envelheciam junto aos filhos, se desagregou. Eu
tenho amigos que ainda tentam ressuscitar esse projeto, brincam com os netinhos
e conformam-se em correr atrás dos filhos, sempre ocupados com seus
próprios sonhos!
Um número crescente de pessoas sente como eu. Se é um coma, não
quero acordar, porque minhas emoções continuam vivas! Posso adaptar projetos,
mas desistir dos sonhos nunca! Um antigo ditado dizia que a vida começava
aos 40. Depois, aos 50. Estou pronto para considerar os 60 como a idade de
ouro. É assim, juro. Eu olho para minhas amigas, parentes: em um olhar, gesto,
percebo a garotinha que ela foi. A adolescente. Está lá, viva! Minhas emoções,
tantas vezes, são as de um jovem começando a vida. Sempre quero fazer algo
de novo. Voltei a pintar. O coração bate acelerado porque uma nova novela está
a caminho, ou conheci alguém. E tem mais uma pergunta importante: eu estou
em coma, não reconheço a realidade dos meus 60? Bem, se isso é um estado de
sonho, de desprendimento da realidade, sou como a personagem da peça. Não
quero acordar. Quero bater a cabeça como um adolescente e até, juro, brincar de
esconde-esconde dentro de casa. Quero, enfim, sonhar.
A emoção não tem idade. Conformar-se com uma realidade que não nos
faz feliz, isso sim é viver em estado de coma. Mas a emoção pode transformá-la.
Nós todos enfrentamos essa espécie de Alasca.
Disponível em: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/walcyrcarrasco/noticia/2015/11/idade-daemocao.html
.Acesso em: jul. 2016