1º Vida é dor, e acordo com dor de dentes. O dia é
belíssimo, um sol de verão invade o barraco; quanto a
mim, choro de dor. Choro também por outras razões,
mas principalmente de dor.
2º Vida é combate. De nada me adianta ficar
deitado. Levanto-me e começo a fazer ginástica. Ao
fletir o tronco, dou com o bilhete da Francisca, em cima
da cadeira.
3º Escrever é uma conquista recente de Francisca,
que frequenta, com muito sacrifício, um curso noturno
de alfabetização. A caligrafia melhora dia a dia,
constato, desdobrando a mensagem que, infelizmente,
não me dá outros motivos de satisfação: Francisca
acaba de me deixar, optando por um estivador – o que
afinal de contas está bem de acordo com a falta de
sensibilidade dela, mas me cria problemas: quem vai
cozinhar? Quem vai arrumar o barraco? Quem vai me
arranjar dinheiro para o cinema? Ai, vida é
preocupação.
4º Mas a vida também é alegria. O Sol brilha, a
ginástica me faz bem, e, se Francisca me deixou,
mulheres não me faltarão. Aliás, não guardo nenhum
rancor a Francisca. Ela nunca esteve à minha altura.
Porque, se hoje moro em barraco, é por opção: fui
criado por um tio rico, e nada me faltou a não ser o
tédio. Por causa deste me tornei hippie. Depois resolvi
profissionalizar-me e me tornei pobre de verdade. Foi
assim que vim morar neste barraco, a princípio sozinho;
mais tarde trouxe a Francisca, então uma simples
empregada doméstica, uma analfabeta. Agora ela me
deixou. Mas não tem nada, vamos em frente, amanhã
será outro dia.
5º A dor de dentes, momentaneamente aliviada,
retorna feroz. Preciso ir ______ dentista, concluo.
Cachaça com fumo não vai me adiantar, principalmente
se a gente não tem – como é o meu caso – nem cachaça
nem fumo. Nestas horas me arrependo um pouco de ter
deixado o lar do meu tio. Pelo menos, não deveria ter
jogado fora o cartão de crédito que ele me deu.
6º Decido ir ao dentista da associação beneficente
da vila, que trata os pobres de graça. O dentista é uma
bela pessoa, gordinho e simpático; examina-me
rapidamente e decide que o caso é de extração. Posso
escolher, informa-me; extração com anestesia (o que
me custará uma módica quantia), ou sem. Escolho sem,
e berro quando o dente é arrancado. O dentista pensa
que eu grito de dor, mas se engana; berro de satisfação
pelo dinheiro poupado. Gastar só para me tornar
insensível? Absurdo. Vida é sofrimento; sofrer é tragar
a vida a grandes goles, conforme explico ao dentista ao
me despedir, com a boca cheia de sangue.
7º Cuspindo glóbulos pelos caminhos empoeirados
da vila, desço _____ cidade, com o propósito de
arranjar um café, senão o da manhã, pelo menos o da
tarde: são quase três horas.
8º O movimento nas ruas do centro me surpreende.
Uma quantidade enorme de pessoas, nas ruas, nas lojas.
E aí me dou conta: é 31 de dezembro. O último dia do
ano!
9º Vida é emoção. Lembro-me de como eu e o tio
comemorávamos a passagem do ano: muito doce, muita
champanha. Meu tio, esqueci-me ______ dizer, era
importador de vinhos finos, de modo que o champanha
era sempre do melhor, embora eu custasse um pouco a
me embebedar com ele. A noite de 31 de dezembro era
de sonhos e esperanças. Lembrando-me disso sento na
sarjeta e choro, choro...